terça-feira, 23 de novembro de 2010

Eu, meu amigo Haroldo e o preá

Minha infância, até por volta dos 10 anos, dá um livro com algumas centenas de páginas. Foi uma fase intensa, bem vivida, extraordinária. Tenho em minha memória milhares de situações por que passei, experiências e histórias que sempre emergem das minhas lembranças e que por vezes conto aos mais chegados. Entre muitos causos que vivi, uma parte deles foi ao lado de um grande amigo, que até hoje mora lá perto de casa. Haroldo era uma figura singular, específica, que exige antes uma explicação. Desde pequeno, Haroldo tinha um perfil diferente. Ele era meio uma mistura de ecologista, caçador, colecionador de bicho estranho, aventureiro, índio (apesar de ser galego sarará). Na casa dele não era incomum encontrar cobras, lagartos, escorpiões, calangos, aranhas, peixes esquisitos – bichos que ele criava com um enorme carinho. Lembro bem de um peixe que Haroldo me deu e que eu morria de medo. Era um peixe gordinho, cumprido e que tinha uns bigodes esquisitos. Eu o guardei dentro de uma bacia plástica branca que minha mãe tinha, retangular. O bicho, que era de água salgada, ficava nadando super rápido dentro do recipiente, nervoso, agitado, e eu morria de medo que ele me mordesse. Morreu de fome porque eu não dava comida. O dia do preá foi inesquecível, um capítulo à parte. A gente tava na primeira para a segunda série do primário, hoje ensino fundamental I. O preá é um bichinho bem fofo, chamado por alguns de porquinho do mato, porquinho da Índia. É um roedor domesticável, que dá pra criar em casa se maiores trabalhos. Haroldo tinha um, até aquele famigerado dia. A gente tinha chegado a casa dele depois de uma de nossas expedições aventureiras. Estávamos com a maior fome. Normalmente, nessas circunstâncias, era comum que nós pegássemos “emprestado” umas frutas nos quintais dos vizinhos do bairro, tipo jambo, coco, manga etc. Mas nessa ocasião tivemos uma ideia diferente: almoçar o preá. Antes disso, porém, era preciso matar o bichinho. E essa foi a primeira e difícil decisão. A fome era grande, mas Haroldo gostava dele. O segundo passo, resolvida a questão inicial, seria o de saber como iríamos sacrificá-lo. Escolhemos o pior jeito, mas deu certo no final. Segurei o bicho pelo corpo, deixando só a cabeça do lado de fora. Haroldo pegou um porrete e se preparou para desferir o golpe. Veio a porrada. O bichinho ficou se tremendo todo na minha mão – gosto nem de lembrar-me da cena. Joguei-o no chão. Haroldo se encarregou de fazer o resto. Não lembro como foi porque fechei os olhos. Depois da execução, foi só “tratar” o preá, tirar vísceras, pele, cabeça e partes não comestíveis. Em seguida, foi a vez de temperar o bicho. Lembro que a gente pegou cominho (tempero seco) e colorau e saiu esfregando nas carnes do preá, meio que fazendo uma crosta vermelha e marrom. Umas pitadinhas de sal foram suficientes para terminar o processo de “dar gosto” ao nosso prato. Por fim, assamo-lo na manteiga usando uma frigideira bem pequenininha da mãe de Haroldo. O fogo tava no máximo e em poucos minutos o cheiro subiu. A casa de Haroldo ficou toda incensada de preá na manteiga, foi um fumacê medonho. Prato pronto, chegara a hora de comer. Sem arrodeios, Haroldo deu a primeira dentada, me passou o resto do bicho com a mão mesmo. Dei umas mordidas pra ver se o preá tava bom. Lembro que a gente balançou a cabeça um pro outro, como que aprovando o resultado do preparo. Até hoje lembro o gosto daquele negócio, além do cheiro, é claro. Não conto aqui pra não constranger. A gente comeu tudo. Jogamos só as carcaças fora. Na hora não tive coragem de falar, mas tava ruim pra cacete. Não pelo preá em si, que tem uma carne até saborosa. Mas provavelmente, se eu tivesse que preparar outro nos dias de hoje, temperaria só com sal e uma pitadinha de pimenta do reino. Cominho e colorau nada têm a ver com carne de preá.